sábado, fevereiro 02, 2008

O advogado e a grana

Esta semana, no sindicato em que trabalho, um do trabalhadores que iriam homologar sua rescisão de contrato de trabalho, foi acompanhado por um advogado que eu já conhecera ainda nos tempos de faculdade quando me dirigia ao Juizado Especial Criminal para acompanhar uma audiência pelo Núcelo de Prática Jurídica da PUCPR. O conheci num lugar incomum para se fazer amizades, incomum ao menos para quem mora na região de Curitiba - no ônibus. A julgar pela simpatia incomum para um advogado e, principalmente por seu sotaque, creio ser ele baiano. Bom, a questão é que na época em que eu o conhecera, ele me entregou um texto muito engraçado, que eu havia perdido, comentei com ele, e ganhei outro novo em folha. O texto é muito bom, por isso irei reproduzi-lo aqui. É meio longo, mas vale a pena ler até o final:

"A convite e estudantes veteranos e professores da Unifoz (Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu), no início de 1997 ministrei a primeira aula para turma de 40 calouros da escola. Era minha estréia professoral, e me empolguei, cogitando de deixar à posteridade algo como a monumental Oração aos Moços, de Rui Barbosa - mas, sem talento para tanto, resolvi improvisar. Envergando terno preto e sobraçando dois volumosos alfarrábios entrei resoluto na sala, às 19h40, de óculos escuros. Uma diligente secretária me apresentou como professor substituto; meio tenso, bradei: 'Olá, colegas!', e comecei a memorável noitada estudantil:

'Não vou fazer como os demais professores, que vão enchê-los de falsas esperanças. Se vocês têm certeza de que querem mesmo cursar Direito cumpre-me alertá-los, com conhecimento de causa, que há advogados às pencas faiscando pela comarca, e vários deles se debatem na dificuldade. É certo que muitos aqui vão enfrentar sérios problemas financeiros e acabarão se submetendo a trabalhos comuns, de garçom, balconista, manicure, cobrador, e até ajudante de pedreiro. Dos fóruns à porta das cadeias, a concorrência é selvagem.'

'Diante dessa realidade, ponham as barbas de molho. Contudo, evitem pré-julgamentos, pois 'Quem vê cara, não vê coração: tem gente de cara feia com um coração horroroso', diz Millôr Fernandez; já o inspiradíssimo e sagaz Nelson Rodrigues observava que 'Nem todas as mulheres gostam de apanhar...só as normais.'

Fiz pausa e notei que a turma toda, incrédula, olhava atentamente para mim. Percebendo que ia bem, prossegui, coloquial e fleumático: 'Para evitar aflições futuras, comece logo a se conscientizar de que o primeiro dever do advogado é com a grana. De uma causa que vale dez mil reais, cobre o dobro, e peça, no mínimo, a metade adiantado. Depois aja. Se der para quebrar o galho do suplicante, parabéns!, você estar unindo o útil ao agradável, embora a satisfação dele não seja exatamente o busílis¹. Repito, advogado vivo deve ter seus honorários como prioridade absoluta. Isto é, aquele que quer prosperar. Não há outra forma de vencer na advocacia.'

Embalado, complementei: 'Vocês conhecem advogado ishperrrto e rico; advogado honesto, porém pobre. No entanto, nenhum que seja honesto e abonado. E como sabemos que mais vale um rico ladrão do que um pobre honesto, retenham o máximo possível dos clientes. Senão, jamais terão carrões, escritório luxuoso, secretárias fogosas ou office-boys malhados, nem poderão curtir férias na Europa. Afinal de contas, quem não rouba e nem herda, enrica é merda'.

De repente, uma caloura não se conteve e me inquiriu:

'- O professor está querendo dizer que um advogado não pode ser, ao mesmo tempo, honesto e rico?!

- Pode, como exceção que confirma a regra, embora nesse particular eu não conheça nenhum caso. Entretanto, vibro ao notar que uma aluna se preocupou com honestidade nesta sala. Disso depreendo que a imensa maioria aqui é de ishperrrtos...o que me dá a certeza de que teremos uma fornada de advogados progressistas!'

Olhei atravessado para ela e emendei, impiedoso:

'- Exceto você, pureza, que não vai triunfar na profissão!'
Entre estuporados e sorridentes, motivados e já incrédulos, os neo-acadêmicos estavam profundamente perturbados, e embevecidos de tal modo que acompanhavam mecanicamente, olhos vidrados, minha evoluções no estrado [e eu, soberano, ia de uma ponta a outra do enorme quadro-negro]. Com domínimo da situação, continuei destilando formidável doutrina que os encabulava.

'Aqui mesmo em Foz conheço um colega honestíssimo. Coitado, perambula pela Avenida Brasil de paletó surrado à vez arrastando sandália japonesa, 'filando' cafezinho de uns, emprestando cigarro de outros, catando jornais de cortesia...Como nunca se preocupou com números, acaba de ser despejado do Nagibão²: há meses não conseguia sequer pagar o aluguel da saleta que ocupava ali.'

E para estimulá-los ainda mais fiz uma observação picante:

'Convidado a vir aqui dar aula para vocês, gelei. Sei que estou lidando com cobras. Todavia, como diz Mike Tyson: 'Não tenho medo de ficar numa sala com serpentes...até que apaguem a luz'. Além disso, ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração'.

Discorri sobre a efemeridade da vida, as fases da putrefação nos cadáveres humanos, a influência da empregada doméstica na explosão demográfica, a fragilidade dos cachimbros de barro, a masturbação sociológica do governo FHC e a indefinição sexual do anjos.

Falei da premência de o profissional se capitalizar com rapidez, dadas a insignificância dos despossuídos e a celeridade do tempo.

'O Direito não socorre aos que cochilam', aduzi, recorrendo à sentença clássica: 'Caia matando para faturar adoidado', preguei.

Fui da hegemonia de pleura à bauxita refratária, brincando. 'Um grande advogado precisa de um mínimo de conhecimento jurídico, como ensinava o repentista Zé Limeira: 'Jesus Cristo foi um homem/Que sempre gostou da Justiça/Com 12 anos de idade/ Discutiu com a dotoriça/E trinta anos depois/Sentou praça na puliça'.

Avisei que o professor titular estava para chegar, e repiquei:
'Nunca vacile: pegue muito dos clientes. Prefira sempre moeda sonante, mas não se constranja em abraçar cheque pré-datado, nota promissória, bens móveis e imóveis, jóias, gado..."

'E para que vocês alcancem todos os seus objetivos, principalmente no que se refere à sagrada bufunfa, que é a coisa mais importante da advocatura, vamos rezar o Pai Nosso', exortei.

Os estudantes, em uníssono, declamaram a bela oração. Alguns, contritos, abriram os braços largamente, mãos espalmadas para o alto.

Foi aquele contraponto espetacular, fervoroso, reconfortante. Ali alcancei o pico da credibilidade - e onde avancei, triunfal:

'Agora que já dei o tom da coisa, deixemos a filosofia e vamos à parte técnica para encerrar a aula', propus. 'Que alguém leia a página 58 deste livro', solicitei, exibindo antigo volume de Geriatria.

Voluntariosa, aquela caloura 'honesta' se dispôs. Tomou-me o encardido calhamaço e o folheou até o capítulo que eu havia escolhido a capricho. Observei um leve tremor na sua voz ao começar a leitura do texto: 'A incontinência urinária na velhice'...

...mas, como se querendo provar a superação da 'mancada' inicial, ela demonstrou intrepidez e, visivelmente empolgada, leu com timbre cristalino as breves explicações sobre a 'flacidez das partes pudendas', o 'paulatino relaxamento dos esfíncteres' a partir da meia-idade, e 'a flatulência nos idosos'. Foi, de fato, ma-ra-vi-lho-so.

'- Por fim, recomendo que comprem, e analisem detidamente, o livro síntese dos direitos difusos, Annus Beborum Condominium Est³, que custa a bagatela de 200 paus - sugeri, de leve.

Para meu espanto, o interesse foi impressionante. Diversos alunos pediram que eu escrevesse no quadro o título da obra, o que fiz imediatamente, em maiúsculas garrafais, com muito gosto.

'- E a tradução, professor?' - perguntaram-me, ansiosos, enquanto anotavam, letra por letra, em seus cadernos.

'- Na próxima aula!' - respondi, satisfeito, e lhes dei 'boa-noite!'


Notas


1 -
O ponto principal de uma dificuldade, de um problema;

2 -
Também chamado treme-treme, famoso prédio de salas e quitinetes no centro de Foz do Iguaçu;

3 -
Só os iniciados em 'latim de conveniência' sabem que a imaginária peça pode ser traduzida por: '(*) de bêbado não tem dono'. O que aliás, foi esclarecido dias depois, quando escrevi sobre a aula-trote no jornal do Centro Acadêmico, do qua eu era diretor de Comunicação.'"

Ralph Moreira
Advogado atuante em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba.

4 comentários:

Ricardo Jung disse...

gente... duelo de egos!!

advogado e teclado apagado são exemplo de coisas insuportáveis

texto maçante...

Cássio Augusto disse...

hehe... só os advogados para compreender o texto!!!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ralphdefensor disse...

Nobre colega Omar, se possível entre em contato pelo e-mail ralphdefensor@uol.com.br

Tenho alguns textos para submeter ao seu crivo, e lhe falar de outro assunto.

Com um abraço,

Ralph (41) 99935-4422 e 3385-4620